I
Eu não perderia o
concerto de Ravel por nada nesse mundo, e quando soube que a companhia de
Berlim faria sua apresentação no Festival de Ópera que ocorre todos os anos em
Manaus, tratei logo de reservar os meus ingressos antecipadamente. Custaram os
olhos da cara - como popularmente dizem por aqui - mas que me valeriam o
sacrifício e me revelariam novas surpresas. Pois bem. Já a par do ingresso,
restava-me apenas preparar-me corpo e alma para assistir otal concerto que se
realizaria no Teatro Amazonas, um dos teatros considerados o mais belo e
portentoso da América do Sul, construído na fase áurea da Borracha, quando aqui
em Manaus nadava-se em dinheiro e foram erguidos monumentos maravilhosos que
ainda ostentam um certo requinte luxuoso nos trópicos.
Resolvi, porém, que iria
a este evento montada como cd. Sim, montadérrima, sendo aquela, portanto, minha
primeira aparição em público como mulher em um ambiente sociável onde
certamente estaria a elite da sociedade Manauara. Não sou mesmo louca? Rssss...
É claro que cheguei a ponderar diversas vezes acerca desta minha loucura (se
seria correto ou não aquela atitude desvairada) mas ao término de minhas
ponderações, resolvi que iria sim, e que não estaria fazendo nada de anormal,
afinal, eu era apenas uma cidadã que estava fazendo usufruto de minha liberdade
de ir e vir, como reza a constituição nesse país. E ademais, o que poderia
ocorrer de constrangedor, senão alguns olhares especulativos ou algum
comentário malicioso aqui ou acolá, como de fato ocorreu, mas nada que pudesse
abalar minha estrutura feminina. No entanto, tudo isso me deixa pensarosa
acerca dessa sociedade mesquinha e o quanto ela não evoluiu, sendo ainda capaz
de guardar tanta mesquinharia e tanto preconceito.
II
Bom, na época, julho de
2011 eu estava relativamente empregada e assim pude comprar uma roupa adequada
para a ocasião. Optei por um vestidinho decotado e curto cor preta, bem sensual - mas nada
alarmante - um salto alto básico combinando com a cor do vestido, um colarzinho
de pérola, uma bolsinha preta para realçar elegantemente com o vestido e outros
acessórios básicos que não entrarei em detalhes, mas que me deixou
elegantéssima, segundo uma velha amiga minha que morava ao prédio ao lado e que
ajudou-me na ornamentação. Por sorte esta minha amiga trabalhava como
maquiadora e graças a ela, aquela talvez tenha sido a melhor maquiagem que
alguém já desdobrou-se a fazer para deixar uma cd linda e deslumbrante:
"Menina, você vai
arrasar - disse Cláudia ao ver-me prontinha!"
"Ai, jura,
amiga?"
"Você está linda, e
não me venha de lá sem ter arranjado um gato bem bonito."
"Só vou assistir a
uma ópera, amiga, não vou atrás de homem." Brinquei com ela. Descemos as
escadas do prédio e ganhamos a rua. Fazia uma noite linda, estrelada. Uma leve
brisa Manauara soprava de leve. Confesso que senti um tremor nas pernas e o
coração começou a bater devagar querendo sair pela boca. Não sei se era por
ansiedade ou nervosismo. As duas coisas talvez. Mas eu estava segura. Poderosa
e segura do que eu iria fazer. Paramos um taxi. Beijei o rosto de minha amiga
agradecendo mais uma vez por tudo e entrei:
"Para onde,
senhorita?" Senhorita? Ele me chamou de senhorita? Que lisonjeio. Adorei.
"Para o Teatro
Amazonas, meu bem."
"Pois não."
Seguimos. Eu ia atrás, um pouco nervosa ainda. As mãos entrelaçadas. O
motorista, um belo homem de seus quarenta e poucos anos, uma barba grossa e
negra contrastando perfeitamente com o cavanhaque de macho, pude notar, ligou o
rádio e uma música doce começou a tocar. Aquilo deixou-me mais relaxada. De
quando em quando, o sujeito olhava pelo retrovisor, talvez querendo puxar algum
assunto, mas ele apenas sorria. Esperei que ele falasse alguma coisa enquanto
retocava a maquiagem no espelhinho da bolsa, mas ele limitava-se mesmo somente a
olhar pelo retrovisor. Um olhar de certa forma, malicioso; um par de olhos que
permutava com certa malícia e respeito. Resolvi quebrar o gelo:
"Noite agradável,
hein? Será que vai chover, moço?"
"Não, não, não se preocupe.
Será uma noite linda, pode ficar tranquila."
"Tem tanta certeza
assim?"
"Ouvi na rádio que
não vai chover."
"Ah, sim."
Continuou me olhando, coçando levemente a barba. Ai ele disse.
"O que tem no Teatro
Amazonas hoje? Desculpe-me a curiosidade."
"Ah, um concerto de
Ravel."
"Algum cantor
famoso?"
"Ravel? Ah, bom,
Ravel foi um compositor e pianista francês do início do século. XX"
“Umm, a senhorita gosta
de ópera, pois não?”
“Sim, sim gosto muito.”
“Nunca fui a uma ópera.
Acho que dormiria, pra ser franco.”
“Não, quando se trata de
um Ravel. Você iria gostar.”
“É mesmo?”
“Só precisa criar gosto
para ouvir coisas diferentes, lhe asseguro.”
“Sabe, moça, gosto mesmo
é de um bom pagode e de uma cervejinha.” Falara isso quando paramos em um sinal
fechado. Ela já me olhava por inteira pelo retrovisor. Sua imagem lembrava-me
aqueles gladiadores de arena dos tempos romanos. Algo como Macistes. Sim, um
belo espécimen de macho. Precisava afastar aquelas ideias da minha cabecinha poluente
e me concentrar em Ravel. Ele continuou falando. Tinha uma voz áspera e ao
mesmo tempo doce.
“Conhece a Toca da
Raposa?”
“An? Ai, me desculpe,
estava distraída, como é?”
“Se conhece a Toca da
Raposa?”
“Não, moço, não conheço.
Do que se trata?”
‘É um Clube de Pagode que
fica na Praça 14 de Janeiro. É bem agitado lá. E de lá que gosto. Cerveja,
amigos e mulheres bonitas...hehehe.”
“Humm... que bom!”
O taxi seguia.
Conversamos bastante. Ele já se mostrava bem íntimo, tratando-me por você. E
todas as vezes que o carro parava embaixo de um sinal, ele relaxava os músculos
poderosos, levantando os braços e expondo suas axilas peludas e negras. Fingia
não notar. A descrição e minha natureza dissimulativa sempre foram minhas armas.
“Como é seu nome mesmo?”
Perguntou-me.
“Márcia. O seu?”
“Getúlio. Seu criado.” E
riu gaiatamente olhando-me sério desta vez pelo retrovisor. Não vou ocultar de
vocês, amado leitores, que fui tomada de grande arrepio e eletricidade pelo
corpo todo. Aquele macho estava me seduzindo e, se não chegássemos tão
rapidamente ao meu destino, juro que faria o jogo dele para ver no que ia dar.
Mas existia Ravel.
“Chegamos, senhorita!”
Perguntei-lhe o preço da corrida. Paguei e agradeci. Mas ele, para minha grata
surpresa, mostrou-me o seu cartão com o número, dizendo em seguida:
“Se precisar de um
motorista para levá-la de volta em casa, estou a sua disposição. É só me
ligar.”
“Agradeço muito. Se
precisar, ligarei sim.”
“Vou esperar, hein?”
Sorri, fechando a porta devagar, ajeitando o vestidinho colado e curto. Ele não
tirava os olhos de mim. Aí, aquela barba e aquele cavanhaque de homem me
desejando, me querendo... Se pudesse, desistiria do meu encontro com Ravel e
seguiria com aquele maciste charmoso e macho para onde quer que ele me
levasse...
Mas enfim, seguimos...
adoro este vestidinho preto, o meu preferido de sair á noite.
Parabéns Marcinha pela sua desenvoltura em se sentir mulher, Que bom que você teve coragem suficiente de assumir uma postura verdadeira que fez de você uma pessoa deliciosamente verdadeira. Vi seu relato e suas fotos e estão belíssimas, principalmente aquela com vestido Preto, estás muito bem nela. Bjinho no coração.
ResponderExcluirParabéns Marcinha pela sua desenvoltura em se sentir mulher, Que bom que você teve coragem suficiente de assumir uma postura verdadeira que fez de você uma pessoa deliciosamente verdadeira. Vi seu relato e suas fotos e estão belíssimas, principalmente aquela com vestido Preto, estás muito bem nela. Bjinho no coração.
ResponderExcluirSou de Manaus
ResponderExcluirQuero teu contato.