sábado, 2 de novembro de 2013

PLANOS PARA OUVIR RAVEL

I
Eu não perderia o concerto de Ravel por nada nesse mundo, e quando soube que a companhia de Berlim faria sua apresentação no Festival de Ópera que ocorre todos os anos em Manaus, tratei logo de reservar os meus ingressos antecipadamente. Custaram os olhos da cara - como popularmente dizem por aqui - mas que me valeriam o sacrifício e me revelariam novas surpresas. Pois bem. Já a par do ingresso, restava-me apenas preparar-me corpo e alma para assistir otal concerto que se realizaria no Teatro Amazonas, um dos teatros considerados o mais belo e portentoso da América do Sul, construído na fase áurea da Borracha, quando aqui em Manaus nadava-se em dinheiro e foram erguidos monumentos maravilhosos que ainda ostentam um certo requinte luxuoso nos trópicos.
Resolvi, porém, que iria a este evento montada como cd. Sim, montadérrima, sendo aquela, portanto, minha primeira aparição em público como mulher em um ambiente sociável onde certamente estaria a elite da sociedade Manauara. Não sou mesmo louca? Rssss... É claro que cheguei a ponderar diversas vezes acerca desta minha loucura (se seria correto ou não aquela atitude desvairada) mas ao término de minhas ponderações, resolvi que iria sim, e que não estaria fazendo nada de anormal, afinal, eu era apenas uma cidadã que estava fazendo usufruto de minha liberdade de ir e vir, como reza a constituição nesse país. E ademais, o que poderia ocorrer de constrangedor, senão alguns olhares especulativos ou algum comentário malicioso aqui ou acolá, como de fato ocorreu, mas nada que pudesse abalar minha estrutura feminina. No entanto, tudo isso me deixa pensarosa acerca dessa sociedade mesquinha e o quanto ela não evoluiu, sendo ainda capaz de guardar tanta mesquinharia e tanto preconceito.
II
Bom, na época, julho de 2011 eu estava relativamente empregada e assim pude comprar uma roupa adequada para a ocasião. Optei por um vestidinho decotado e curto cor preta, bem sensual - mas nada alarmante - um salto alto básico combinando com a cor do vestido, um colarzinho de pérola, uma bolsinha preta para realçar elegantemente com o vestido e outros acessórios básicos que não entrarei em detalhes, mas que me deixou elegantéssima, segundo uma velha amiga minha que morava ao prédio ao lado e que ajudou-me na ornamentação. Por sorte esta minha amiga trabalhava como maquiadora e graças a ela, aquela talvez tenha sido a melhor maquiagem que alguém já desdobrou-se a fazer para deixar uma cd linda e deslumbrante:
"Menina, você vai arrasar - disse Cláudia ao ver-me prontinha!"
"Ai, jura, amiga?"
"Você está linda, e não me venha de lá sem ter arranjado um gato bem bonito."
"Só vou assistir a uma ópera, amiga, não vou atrás de homem." Brinquei com ela. Descemos as escadas do prédio e ganhamos a rua. Fazia uma noite linda, estrelada. Uma leve brisa Manauara soprava de leve. Confesso que senti um tremor nas pernas e o coração começou a bater devagar querendo sair pela boca. Não sei se era por ansiedade ou nervosismo. As duas coisas talvez. Mas eu estava segura. Poderosa e segura do que eu iria fazer. Paramos um taxi. Beijei o rosto de minha amiga agradecendo mais uma vez por tudo e entrei:
"Para onde, senhorita?" Senhorita? Ele me chamou de senhorita? Que lisonjeio. Adorei.
"Para o Teatro Amazonas, meu bem."
"Pois não." Seguimos. Eu ia atrás, um pouco nervosa ainda. As mãos entrelaçadas. O motorista, um belo homem de seus quarenta e poucos anos, uma barba grossa e negra contrastando perfeitamente com o cavanhaque de macho, pude notar, ligou o rádio e uma música doce começou a tocar. Aquilo deixou-me mais relaxada. De quando em quando, o sujeito olhava pelo retrovisor, talvez querendo puxar algum assunto, mas ele apenas sorria. Esperei que ele falasse alguma coisa enquanto retocava a maquiagem no espelhinho da bolsa, mas ele limitava-se mesmo somente a olhar pelo retrovisor. Um olhar de certa forma, malicioso; um par de olhos que permutava com certa malícia e respeito. Resolvi quebrar o gelo:
"Noite agradável, hein? Será que vai chover, moço?"
"Não, não, não se preocupe. Será uma noite linda, pode ficar tranquila."
"Tem tanta certeza assim?"
"Ouvi na rádio que não vai chover."
"Ah, sim." Continuou me olhando, coçando levemente a barba. Ai ele disse.
"O que tem no Teatro Amazonas hoje? Desculpe-me a curiosidade."
"Ah, um concerto de Ravel."
"Algum cantor famoso?"
"Ravel? Ah, bom, Ravel foi um compositor e pianista francês do início do século. XX"
“Umm, a senhorita gosta de ópera, pois não?”
“Sim, sim gosto muito.”
“Nunca fui a uma ópera. Acho que dormiria, pra ser franco.”
“Não, quando se trata de um Ravel. Você iria gostar.”
“É mesmo?”
“Só precisa criar gosto para ouvir coisas diferentes, lhe asseguro.”
“Sabe, moça, gosto mesmo é de um bom pagode e de uma cervejinha.” Falara isso quando paramos em um sinal fechado. Ela já me olhava por inteira pelo retrovisor. Sua imagem lembrava-me aqueles gladiadores de arena dos tempos romanos. Algo como Macistes. Sim, um belo espécimen de macho. Precisava afastar aquelas ideias da minha cabecinha poluente e me concentrar em Ravel. Ele continuou falando. Tinha uma voz áspera e ao mesmo tempo doce.
“Conhece a Toca da Raposa?”
“An? Ai, me desculpe, estava distraída, como é?”
“Se conhece a Toca da Raposa?”
“Não, moço, não conheço. Do que se trata?”
‘É um Clube de Pagode que fica na Praça 14 de Janeiro. É bem agitado lá. E de lá que gosto. Cerveja, amigos e mulheres bonitas...hehehe.”
“Humm... que bom!”
O taxi seguia. Conversamos bastante. Ele já se mostrava bem íntimo, tratando-me por você. E todas as vezes que o carro parava embaixo de um sinal, ele relaxava os músculos poderosos, levantando os braços e expondo suas axilas peludas e negras. Fingia não notar. A descrição e minha natureza dissimulativa sempre foram minhas armas.
“Como é seu nome mesmo?” Perguntou-me.
“Márcia.  O seu?”
“Getúlio. Seu criado.” E riu gaiatamente olhando-me sério desta vez pelo retrovisor. Não vou ocultar de vocês, amado leitores, que fui tomada de grande arrepio e eletricidade pelo corpo todo. Aquele macho estava me seduzindo e, se não chegássemos tão rapidamente ao meu destino, juro que faria o jogo dele para ver no que ia dar. Mas existia Ravel.
“Chegamos, senhorita!” Perguntei-lhe o preço da corrida. Paguei e agradeci. Mas ele, para minha grata surpresa, mostrou-me o seu cartão com o número, dizendo em seguida:
“Se precisar de um motorista para levá-la de volta em casa, estou a sua disposição. É só me ligar.”
“Agradeço muito. Se precisar, ligarei sim.”
“Vou esperar, hein?” Sorri, fechando a porta devagar, ajeitando o vestidinho colado e curto. Ele não tirava os olhos de mim. Aí, aquela barba e aquele cavanhaque de homem me desejando, me querendo... Se pudesse, desistiria do meu encontro com Ravel e seguiria com aquele maciste charmoso e macho para onde quer que ele me levasse...

Mas enfim, seguimos...
 adoro este vestidinho preto, o meu preferido de sair á noite.

3 comentários:

  1. Parabéns Marcinha pela sua desenvoltura em se sentir mulher, Que bom que você teve coragem suficiente de assumir uma postura verdadeira que fez de você uma pessoa deliciosamente verdadeira. Vi seu relato e suas fotos e estão belíssimas, principalmente aquela com vestido Preto, estás muito bem nela. Bjinho no coração.

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  2. Parabéns Marcinha pela sua desenvoltura em se sentir mulher, Que bom que você teve coragem suficiente de assumir uma postura verdadeira que fez de você uma pessoa deliciosamente verdadeira. Vi seu relato e suas fotos e estão belíssimas, principalmente aquela com vestido Preto, estás muito bem nela. Bjinho no coração.

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